O cineasta chinês Bi Gan retorna ao Festival de Cannes com “Resurrection”, um longa-metragem ousado, visualmente deslumbrante e repleto de simbolismos que flerta com o surreal e o onírico. Conhecido por “Long Day’s Journey Into Night” (2018), experiência quase extraterrestre no cinema que desafiava a percepção do tempo e da memória, Bi Gan agora apresenta uma obra fragmentada, nem sempre coesa, mas igualmente fascinante, que culmina em sequências visuais arrebatadoras e planos-sequência de tirar o fôlego.

“Resurrection” pode ser interpretado como uma longa noite rumo ao esclarecimento que vem com o nascer do sol — não à toa, o filme termina em uma boate chamada Sunrise. Trata-se também de uma viagem episódica pela história da China, concluindo no simbólico réveillon de 1999, momento de transição em que o país passou a adotar um capitalismo agressivo sem abandonar o conformismo político tradicional.

A narrativa se desenrola em um universo alternativo onde os seres humanos descobriram que podem viver indefinidamente — desde que não sonhem. O sonho, nesse contexto, queima a existência como uma vela acesa. Bi Gan sugere, sem afirmar, um dilema: seria essa a solução para a superpopulação?

Mas há uma exceção a essa regra: um homem que sonha. Ele é o Fantasmer, vivido por Jackson Yee — um “monstro sagrado” cuja intensa percepção de ilusões e sonhos o permite reencarnar em diferentes realidades marginais ao longo do século XX. Em sua trajetória, ele é acompanhado por uma mulher enigmática, embora não fique claro se é ela quem sonha com ele, ou se ele a imagina.

No início do século, num cenário que remete ao cinema mudo, o Fantasmer surge como uma figura pálida semelhante ao vampiro Nosferatu, cuidada por uma mulher misteriosa interpretada por Shu Qi. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele se vê envolvido em uma briga violenta em uma loja de espelhos, evocando o clássico “A Dama de Xangai”, com direito até ao uso de um theremin. Avançando vinte anos no tempo, o protagonista aparece em um templo isolado, coberto pela neve, onde quebra uma estátua de Buda e se depara com o Espírito da Amargura.

Décadas depois, ele é um vigarista que manipula uma menina em um golpe contra um chefão local. Já no limiar do novo milênio, o Fantasmer cruza caminhos com outro mafioso, o Senhor Luo, marcando sua ascensão a uma nova dimensão — tanto na trama quanto nos recursos visuais do longa.

“Resurrection” é, acima de tudo, um enigma. Até mesmo o título levanta dúvidas: estaríamos diante de uma verdadeira ressurreição, no sentido de transformação espiritual? Ou apenas observando uma eterna metamorfose, com o Fantasmer como um astro pulsante nos confins do universo, prestes a explodir ou implodir em milhares de anos?

Talvez o objetivo do filme nem seja responder a essas perguntas. Sua essência está no mistério e nos efeitos visuais estonteantes, ainda que alguns espectadores possam se sentir desconectados — especialmente diante de recursos estilísticos inspirados no cinema mudo. Ainda assim, trata-se de uma obra de arte genuína, que instiga o olhar e o pensamento.